Conto escrito especialmente para a minha 6ª série (Parem de apavorar, moçada!)

E se o mote da vez é conto, por que não me travestir de escritora e escrever um conto? Assim os anjinhos não podem dizer "A sora diz que é fácil porque não é ela que tem que escrever!" 

CADA JANELA UM UNIVERSO

Professora Aline



Ai que bom não precisar sair às pressas da cama. O que fazer neste feriado nublado de outono? Pouco dinheiro, então poucas opções. Vou ficar por aqui mesmo curtindo a malemolência do ócio. Para completar o êxtase puríssimo de preguiça e a minha vontade de permanecer em casa, um som de violino chega timidamente, tal qual as réstias de sol: meia música, mais uma tentativa, mais outra meia música. Música clássica ao vivo! Não fossem as pausas, os erros que seguiriam imperceptíveis para uma leiga, porém se percebe que é gente exigente.

A música continua. Aquilo ali do primeiro parágrafo aconteceu até eu chegar aqui no meu computador, que fica na sala. Fiquei me perguntando “Seria a vizinhança um bom motivo para um conto?”. Pensei, pensei e vim para cá agarrar-me com o meu teclado que em Inglês se chama keyboard, o mesmo board de bodyboard. Pensei que a 6ª série poderia me dar uma idéia, orientar-me se seria mesmo um bom motivo para um conto; mas não temos aula hoje. A turma vem ouvindo falar em detalhamento de conto, bom motivo para conto, situação inicial, conflito, etc. A situação inicial aqui seria uma professora de 31 anos, sem nada para fazer num feriado porque está com pouca grana. E o conflito: falar ou não falar da vizinhança; eis a questão.

A vizinhança é musical, não há outro adjetivo que melhor defina. Ao lado direito uma italiana ouve funiculí funiculá, do Pavarotti. Nas alturas! Ao lado esquerdo vive uma grande família de afrodescendentes: três gerações dividindo o mesmo espaço; isso daria pano para tecer uns três contos. A garagem encosta no meu quarto e a moçada ali curte um ritmo dançante, porém não tão agradável aos meus ouvidos. Todo o respeito aos que se comovem com as letras de pagode, mas acho uma dor de cotovelo danada. Nunca reclamei. Se a Dona Izabel, a matriarca já septuagenária, não reclama; por que eu reclamaria? Pois bem, ainda não cheguei à grande história da vizinhança. Antes de chegar à última história, preciso contar sobre a vizinha dos fundos.

Ela é estudante de Inglês e frequentemente vou dormir com a doida ao fone de ouvido repetindo a mesma palavra várias vezes até conseguir o mérito de excelência proclamado por um professor de algum país que fale Língua Inglesa. Hoje em dia, com a Internet, são promovidos intercâmbios culturais online. Essa mesma doida que é louca por bichos, outro dia decidiu salvar um pardal dos dentes afiados da sua gata, a Nega Fulô, a quem chamo de pantera mirim. Pegou o passarinho, enrolou numa flanela e catou um conta-gotas para tratar o bichinho com água doce. Mais tarde, bateu à minha porta, entregou a chave da sua casa e disse “O pardalzinho está dentro do armário da cozinha para que a Fulô não o coma. Você pode dar água com açúcar para ele mais tarde? Preciso sair.” Algumas horas depois, fui tratar do bichinho. Abro o armário, avisto a flanela dentro de um pote escrito “sopa”, inclino a cabeça e lá estava o passarinho de patinhas para cima, mortinho da silva. Morreu de morte morrida. Lá fui eu promover o enterro do bebê Pardal.

A história a qual me proponho desde o início já foi anunciada no primeiro parágrafo: o violinista. Não sei se é negro, italiano ou alemão. Paira um mistério adornando essa história, nunca o vi. Nunca vi ninguém daquela casa grande, onde moram apenas três pessoas. Segundo a mocinha do armazém: mãe, filho e filha. Contam que a família veio do Rio de Janeiro para procurar ares mais puros, já que a dona da casa precisava tomar conta de dois filhos com certo atropelamento das ideias. Comprou a casa “à vista” alimentando as especulações do povo e escolheu uma casa com pavimento superior para montar o estúdio do gênio esquecido.

No Rio de Janeiro, tanto a filha quanto o filho obtiveram grande êxito. Ele com a música clássica, já que se tornou músico da orquestra sinfônica brasileira. Ela tornou-se miss Brasil em 1980. A moça, inconformada com o peso acima da média das passarelas, caiu nos remédios para emagrecimento. Sem fazer uso de receituários, sendo o seu esposo médico, passou a tomar dosagens exageradas passando a ter um comportamento agressivo e deliberado. Na padaria, por exemplo, corta a fila de gestantes e idosos sem constrangimento; enquanto espera os pães serem colocados no saco, a miss Brasil aposentada passa seu inseparável batom.

Dizem que o talento do moço saltava aos olhos rigorosos daqueles que sabem avaliar música clássica. O Brasil era pequeno para tanto talento. Logo saiu desbravando orquestras do mundo e se fixou na Alemanha. Possivelmente tenha se intimidado com talentos da terra de Wagner, o grande, com a aspereza da língua alemã, cheia de consoantes reunidas, e acabara explicando tudo com a palavra preconceito. Afirmou à família, a família conta à mocinha da mercearia e a qual conta ao bairro todo, que os músicos do velho mundo não gostam de músicos brasileiros eruditos, a ponto de ter seu talento desprezado em despeito à sua nacionalidade. Queriam que ele fosse um artista de música popular e que os ensinasse samba e forró de tradição. Quem diria!

Pobre, frustrado e sem perspectivas o musicista desenvolveu síndrome do pânico. Voltou ao Rio de Janeiro, foi aposentado e hoje, aqui na pacata vila Costa e Silva, não vai nem à padaria. Jamais alguém da vizinhança o vira. Quando o Edson da mercearia vai lá fazer entrega, ele se esconde na masmorra-estúdio. Edson também conta que a Miss – assim ela é chamada aqui na Vila – não se esconde de ninguém. Está sempre por aí procurando alguém para narrar o glamour da áurea carreira de modelo. Inclusive, está sempre falando em Língua Inglesa ao telefone público com os seus amigos da Califórnia. O curioso é que o telefone está quebrado há mais de um ano.

É sexta série, empolguei-me. Passei a tarde inteira do feriado escrevendo este negócio aqui, que nem sei se é conto. O que vocês pensam? Eu nem sabia que estavam guardados em minha mente tantos detalhes da vizinhança. Fui alinhavando, puxando a memória, procurando a melhor palavra, trocando a vírgula de lugar. E aqui está a história ou as histórias que me propus escrever no começo da tarde. Fiz para vocês, com a intenção de convencê-los de que todos nós temos histórias que merecem atenção e que podem sim, com uma parcela de ficção, ser transformadas em contação.


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1 comentários:

oriel disse...

Gostei muito do texto, Aline! E que venham mais histórias simples e belas sobre as coisas simples e belas (e viva o Costa e Silva!) :)

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