PERFIS DE ADOLESCENTES
Escrevi sobre ela, ela sobre mim
"É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã"
Renato Russo
Renato Russo
"O amor e a verdade estão tão unidos entre si que é praticamente impossível separá-los. São como duas faces da mesma medalha."
Gandhi
Lívia fala de Raquel
Quando a gente gosta, gosta e pronto,
não é real? É assim com minha amiga Raquel: uma errante! Petulância a minha
julgá-la assim, sendo que eu própria teria uma big lista de defeitos, mas é que
ela vacila com relação aos caras com quem ela... ela já iniciou a vida sexual,
sabe. Mal conhece e logo transa com o cara, ou conhece há tempo e por acaso
decide numa festinha de última hora apenas dar uns beijos, mas acaba não
conseguindo se segurar e acaba na cama com o cara. Isso aconteceu com um amigo
de infância dela, o Sundae.
Sundae era namorado da Pati, outra amiga muito
querida da nossa sala. Desde pirralhos, a Pati e o Sundae diziam um ao outro
que seriam namorados: aos doze se beijaram, aos 14 transaram e aos 15 ele
chegou à Pati e comunicou que estava enjoado daquele longo namoro e que já era
tempo de terminar aquela chatice. Quando a Raquel transou com o Sundae, a
Pati ainda chorava e muito sofria pelo Sundae. E menino adolescente, quando
transa com alguém, já sai logo mundo afora gritando “Peguei a oferecida!”, a
escola I-N-T-E-I-R-A ficou sabendo da transa, e é claro, a Pati também.
Nossa
sala ficou chocada com a atitude da Raquel em transar com o grande amor de uma
amiga, até porque a maioria das meninas da nossa sala é virgem. Foi traumático
para todos nós. Ninguém sabia ao certo como agir com a Raquel; acabamos ficando
sem falar com ela. Ninguém combinou isso, o silêncio aconteceu por si só, acho
que foi um gesto de consolo à Pati, que tanto sofreu. Mas a Raquel surpreendeu
com sua postura segura de si, ela que é loira e tem os seios ENORMES que até
parecem mega silicones de atriz pornô. O fato é que ela não se deixou abater
pelo desprezo e não demonstrou arrependimento em momento algum.
Raquel se defendeu comentando com
alguns amigos que estava meio carente e que o Sundae já não namorava a Pati há
quase dois meses. “Simplesmente rolou”, falava sem constrangimentos. Ela não
usava um tom de gente besta, se é o que parece. Não, ela apenas acreditava não
ter feito nada errado mesmo, ainda que a gente tivesse achado o cúmulo. Foi um
comportamento bem adulto, fiquei de cara! Continuou no mesmo lugar de sempre na
sala de aula, próxima à Pati, inclusive, esperando a poeira baixar. Quando
solicitada que falasse, falava. Senão, ficava na dela, esperando as melhores ocasiões
para nos mostrar com ações “Veja, eu transei com o fulano, mas continuo sendo
parceira.”.
De fato, uma parceira sem igual! Ajudava-me nas disciplinas de
cálculo explicando sem economia de palavras e, apesar da minha limitação com as
exatas, era beeeeeem paciente. Quando eu, submersa em pensamentos ruins e
temendo ficar transparente de fragilidade, decidia ficar alguns dias isolada em
casa sem aparecer na escola, era ela - a taxada de vagabunda - que me mantinha
informada de todos os conteúdos e provas que eu havia perdido. Explicava-me
tudo com o maior entusiasmo, muito maior do que alguns professores
apresentavam: tudo detalhadamente. Também se interessava por minhas trevas
familiares, mas sem perguntas desnecessárias que acabam em fofoca. Ela
simplesmente ouvia meus lamentos com aqueles olhos azuis atentos e depois dizia
“Que barra, amiga!”.
Tinha uma maneira delicada de nos mostrar quando estávamos
sendo injustos com nossos professores. Sabe como é a maioria dos alunos quando
tem seu tempo livre ameaçado pelos afazeres escolares: se não consegue
desenvolver uma atividade ou uma pesquisa já entoa uns palavrões e logo atrás
uns xingamentos ao professor que propôs aquele “CÔ” de atividade, sempre vista
como inútil. A Raquel tinha a bondade de nos lembrar as dicas que o professor
dissera no dia da proposta da atividade e os passos a serem seguidos, segundo o
(a) professor (a). Assim, ela conseguia que os professores fossem absolvidos pelos pentelhos de plantão,
contrariando a nossa rebeldia sem justa causa.
Espero ter conseguido destacar
os traços mais marcantes de Raquel, a quem tanto estimo, apesar de algumas
imoralidades, será que isso existe? Nós mulheres temos que nos unir e não nos
denegrir. Posso acreditar que a pessoa mais otária daquela história do início
do texto tenha sido o Sundae, quem contou a todos o que aconteceu na sua
intimidade. Em
Língua Portuguesa , quando aprendemos sobre gênero dramático,
lembro-me da professora falando de um tal Nelson Rodrigues, considerado por
suas histórias e comportamentos como um “anjo pornográfico”. Achei perfeita a
definição e vou usá-la para me referir à Raquel, minha parceira. Raquel é meu
anjo pornográfico.
Raquel fala de Lívia
Não
é tarefa fácil falar de Lívia. São as nossas diferenças que me incomodam, mas
são elas que me mantêm perto daquela neguinha brava, que tenta esconder a fragilidade
e ternura que existe ali naquele coraçãozinho confuso. A Lívia é filha de
traficante viciado em crack e cresceu num esquema olho por olho dente por
dente. É claro que ela não sai matando
ninguém, mas a intolerância se revela em momentos banais, quando ela logo se
enraivece e, na maioria das vezes, sem motivo justo. Se alguém se esquece de cumprimentá-la no
corredor da escola, por exemplo, já é motivo para que todas as 50 vezes que aquela
pessoa a cumprimentou sejam esquecidas. Se uma amiga se compromete a
emprestar-lhe o caderno e acaba por não poder mais emprestar porque uma prova
de última hora é marcada, pronto – a situação é encarada como uma traição sem
tamanho.
Vários outros exemplos eu poderia citar, mas em resumo, digo que o seu
cérebro converte situações corriqueiras e normais em repudiáveis afrontas; isso
me causa piedade porque é a prova do quanto ela se sente pequenina. A gíria que eu poderia usar para
caracterizá-la é “escamada”, é isso. Às
vezes ela gargalha alto e quer fazer piada em meio a explicação de um conteúdo
novo. Ela é mesmo muito divertida, mas quando estamos em sala de aula enche o
saco, afinal, depois sou eu que salvo as suas notas explicando tudo que os professores
já explicaram. Tudo bem, penso até em me tornar professora um dia, mas isso me
toma um tempo danado!
A explicação do professor parece ter serventia apenas para a sua
auto-afirmação, que ela constrói no momento em que faz graça e todos dão
risada. A situação vai deixando os professores irritados: nas primeiras
interrupções são pacientes, mas a partir da terceira interrupção o fluxo de
pensamento já foi estilhaçado e então só resta chamar a atenção da Lívia; ela
não retruca quando isso acontece, mas fica de braços cruzados e cara demoníaca encarando o professor até o final da aula. Digamos, então, que essa sua
indisposição em ver a situação como um todo e não apenas a sua existência reinante
seja o seu grande defeito. Apesar disso,
gosto muito dela e a ajudo com gosto sempre que posso porque percebo que, caso
ela não tivesse exemplos tão rudes vindos do pai e da mãe, ela seria muito mais
paciente e poderia ser mais justa em seus julgamentos.
Desde que descobriu que
nossa professora de Ciências tem a mesma idade que a sua mãe, projeta uma mãe
imaginária naquela professora que aparenta ser jovem e nos apresenta sabedoria
e delicadeza em suas declarações. Tantas
vezes durante o ano, Lívia se encostava ao lado de fora da nossa classe assim
que batia o sinal para o início da aula de Ciências e assim que a professora se
aproximava ela obstruía a entrada da sala com o seu corpo e perguntava
“Professora, você pode me dar um abraço?”. Era de cortar o coração. A
professora entrava, colocava o seu material na primeira carteira da classe e
carinhosamente oferecia-lhe um abraço caloroso.
Tenho abraços calorosos vindos
da minha mãe quase todos os dias e eu não preciso pedir: eles chegam de
surpresa; de alguém que me aceita e me ama com minhas qualidades e defeitos. Se
eu estiver com problemas, como em um caso grave que aconteceu esse ano quando
só faltaram me apedrejar na esquina feito Maria Madalena, corro para o sofá de
casa onde abasteço minha calmaria. A mãe de Lívia engravidou dela quando tinha
apenas 14 anos, hoje ela não tem nem 30 anos ainda, parece uma mocinha exibindo
um corpão violão, além de estar sempre com roupas de grife. É meio que uma
patricinha de subúrbio que não se vê como mãe e vive para cultuar sua imagem.
Não que toda mãe bonita com menos de 30 anos seja assim, o que quero dizer é
que parece haver uma rivalidade entre as duas. Então, quem assume o papel de
mãe é a avó; a mãe é como se fosse uma irmã mais velha.
Há dois anos, aos domingos, ela visita o pai
na prisão. Lívia não fala sobre isso o tempo todo, mas quando debatemos em sala
de aula nas disciplinas de Língua Portuguesa e Sociologia sobre a legalização
da maconha, ela disse abertamente à classe que era a favor da legalização
porque foram os lucros da venda clandestina de maconha que seduziram seu pai,
eletricista de profissão, à vida fácil. Comentou sobre a inteligência do pai e
sobre a pequena fortuna acumulada enquanto praticava o tráfico.
Lívia fala
mesmo o que pensa que deve ser dito, tem um jeito irreverente de ser – é quase
uma artista. As gargalhadas que ela nos arranca fazem com que ela se sinta
aceita e amada. Sou bem diferente, mais calada e séria, deve ser a origem russa.
Já os afrodescendentes são mais falantes e musicais, deve ser por isso que
gosto tanto da sua presença – ela me completa. Inclusive, a Lívia é guitarrista de uma igreja evangélica, parece que foi um cara de uma banda de rock que
fundou essa igreja, onde tem um monte de doidão tatuado e de piercing. A
vivacidade de Lívia, apesar de todos os dramas que viveu e ainda vive, é
admirável. É o que fica e o que deve ser citado para finalizar esta declaração
de amizade.
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Análise do texto:
1)Qual ação de Raquel fez com que toda a turma deixasse de falar com ela?
2)Como a classe deveria ter agido em sua opinião?
3)Por que foi tudo tão difícil para Pati?
4)Para a surpresa da classe, qual foi a reação de Raquel?
5)Como justificar a expressão atribuída por Lívia à Raquel como "anjo pornográfico"?
6)Segundo Raquel, Lívia é intolerante em certos momentos. Transcreva exemplos citados por Raquel.
7)Como Raquel justifica o comportamento hostil de Lívia?
8)Quais situações, com relação à Lívia, incomodam imensamente os professores?
9)Deixe um recado à Pati.
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Análise do texto:
1)Qual ação de Raquel fez com que toda a turma deixasse de falar com ela?
2)Como a classe deveria ter agido em sua opinião?
3)Por que foi tudo tão difícil para Pati?
4)Para a surpresa da classe, qual foi a reação de Raquel?
5)Como justificar a expressão atribuída por Lívia à Raquel como "anjo pornográfico"?
6)Segundo Raquel, Lívia é intolerante em certos momentos. Transcreva exemplos citados por Raquel.
7)Como Raquel justifica o comportamento hostil de Lívia?
8)Quais situações, com relação à Lívia, incomodam imensamente os professores?
9)Deixe um recado à Pati.
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