O ci-ne-ma silábico do menino! Por Aline Pereira

O nome do menino? Não é preciso. Aos seis anos, arrancado dos pais adotivos, ouviu o cochicho da mãe biológica: _ O guri ficou bonito e robusto, quero ele de volta! Os pais adotivos, com quem ele estava desde bebê, não sabiam endireitar o causo com Direito. Não fizeram nada além de chorar. Saudade e estranhamento: o pai de sangue era usuário do cachimbo crackento. O menino vivia a olhar o quintal da mãe de amor: as famílias moravam na mesma ruela de pó. Aquela mãe ali, a que esteve presa a ele pelo cordão umbilical, também lhe tinha amor. Um amor confuso. Ele não queria confusão: _ Quero aprender a ler, professora! Naquele ano: não aprendeu. Mal dormiu, nem brincou. Suspenso, as famílias de cada letra também lhes soavam azucrinantes. Nada colava na mente. O pesadelo alternava entre casa e escola. Também o fel do sentir-se incapaz. Todos aprovados, ele retido. O desgosto da reprovação. No segundo ano de escola, os pais biológicos desistiram mais uma vez do menino. Mas os sons das sílabas... _ Socorro, o som das sílabas! Vinham associados ao drama do ano anterior. _ Deve ser disléxico, vamos aprová-lo para que ele faça amizades! Passaram-se anos em que o menino interpretou a figura de um malandro que não o habitava. Estava tolhido do exercício de sua brandura: _ Se eu fizer bagunça na classe, todos vão pensar que não preencho o exercício do caderno por ser ‘bagunceiro’. Assim, ninguém vai saber que sou analfabeto! E continuou, na nova escola em que o matricularam, interpretando o menino tolo que não era. Os professores do novo endereço não quiseram adotar a mentira. Tomou-se providências. Sugeriu-se ao menino que a verdade fosse revelada à classe para que ele contasse com a solidariedade dos amigos que ele conquistaria com os fatos reais. Escolheu a omissão: _ Não quero que saibam. Todos vão me zoar, professora! A maioria das crianças mostrava-se sensível àquela história muito nova de um menino grande que não sabia ler. Observavam atentos as ações do colega: ele se aquietava na hora de copiar qualquer coisa da lousa, mas escrevia palavras aleatórias de outras lições para preencher o tempo e as lacunas. Uma senhorinha da escola o ajudava a subir uma ladeira íngreme que o conduzia cada vez mais perto dos gibis, dos significados das palavras da lousa, das revistas com figuras bonitas e suas legendas. Quando estava chegando no topo da ladeira das sílabas, permitiu que a professora contasse à classe a verdade. Havia outro sonho ENORME: ele poderia, enfim, retornar a si. Não seria mais preciso dissimular. Sonhava em ser amável com os colegas. Sonhava em dizer, como qualquer outra criatura “não sei”, acreditando que logo adiante passaria a saber. Ao final daquele ano, conhecia pouco para ser considerado menino alfabetizado: queriam reprová-lo e ficaria isolado em classe desconhecida. Para convencer o corpo docente de que ele deveria seguir com a classe que o acolhera, a senhorinha que o convencia do céu azul ao final da ladeira narrou detalhes delicados aos professores. Ela contou sobre o primeiro dia em que o garoto sentiu vibrar em suas cordas vocais uma palavra encantada por sua tessitura de sons e significados. Sua mestra enrugada e delicada o despertou de uma sonolência de 14 anos. Ela o ajudou a dominar no peito uma porção de sonhos quando o menino leu pela primeira vez, ainda que silabicamente a palavra ‘ci – ne – ma’. Maravilhou-se. CINEMA!!! Agora bem rápido e sem gaguejar exclamou a palavra antes que lhe fugisse da cabeça. Continuaram aparecendo uma porção de enigmas e situações cabeludas de resolver, entretanto decidiu, naquele dia, que outros milagres tinham que acontecer: creu todo esse tempo que fosse burro de nascença. Começou a escrita independente com um bilhetinho de amor composto sem a certeza de que chegaria às mãos de Sabrina. Isso era menos importante, afinal, naquele momento eram paquerados todos os nomes do mundo.

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